Ana da luta,
você não me conhece
mas eu te escrevo do futuro
daquele futuro que você sonhava, lembra?
Pois é, eu vivo nesse futuro
mas os operários ainda trabalham para enriquecer seus patrões
muita gente ainda não tem onde morar com dignidade
e ainda há muita fome, Ana, muita fome.
Muitas crianças ainda não vão à escola
as escolas hoje oferecem muitos riscos e pouca educação.
A violência crescente colocou armas e drogas nas escolas
adultos que aterrorizam alunos
professores mal pagos
e nada de ensinar civismo, cidadania, filosofia ou política.
Os seres humanos também pioraram bastante,
quase não há pessoas da mesma forja de onde você saiu.
Mas olha, houve sobreviventes à toda a tortura e barbaridade dos anos de chumbo.
Você mesma sobreviveu, e contribuiu para que hoje pudéssemos continuar nos indignando.
Eu aprendi muita coisa com um certo sobrevivente, esse mesmo que me mostrou você
mostrou-me também textos, livros, obituários sobre toda essa luta que ainda hoje continua.
Hoje as pessoas podem se reunir, escolher representantes, discutir idéias...
mas acho que falta gente nova com ideais, sabe, Ana?
Como você, eu também não tenho uma opção prática para o Brasil.
Mas o homem que me mostrou todo esse material também me falou de Victor Hugo, Brecht,
Tiago de Mello e outros assim, e me explicou sobre esse amor que permeia a luta;
me falou dessa coragem que anestesia o medo; me fez ver que o mundo pode não ser agora o mundo que desejamos
mas que foi conquistado o direito de resistir, de contestar, de reagir.
Me ensinou também que a paz é fruto da luta, da guerra; que tudo o que acontece a um de nós atinge a todos.
Que a luta não acaba nunca e que os vigilantes da História estão a postos eternamente: seja aí no céu, onde você está entre as estrelas, junto com os outros guerreiros, ou seja aqui, na terra, como testemunhas vivas que mantem - com as memórias cheias de sangue e uma lista imensa de desaparecidos - as mãos fixas no portal aberto da liberdade, para que ele não se feche nunca mais.
Ana, a noticia boa é que a História colocou no poder uma mulher da luta, que um dia também foi perseguida, que conheceu o processo ditatorial e também sobreviveu.
Agora sim, Ana, a gente tá no futuro, quem sabe seja o futuro que você sonhava.
Mas isso é assunto para uma outra carta, é preciso ainda escrever o futuro para que eu possa contá-lo a você.
Por tudo o que eu não fiz, porque quando eu cheguei você e os outros já haviam feito, as minhas homenagens.
Por tudo o que foi feito, eis aí o tributo da História e o reverso da medalha acontecendo hoje, agora.
Fique feliz, Ana!... Ainda está sendo construída a Hora; está sendo possível mudar a História!
Gisele Maria Zambonini
(*)
Livro que fala das Cartas do Chile . de Jane Vanini
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