Reportagem de Ana Maria Morales Crespo, jornalista, portadora de deficiência física, presidente do Centro de Vida Independente Araci Nallin.
"As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental" disse um dia Vinícius de Moraes, resumindo e definindo as aspirações da maioria dos homens em relação às mulheres. Felizmente, para as não tão bonitas nem tão perfeitas a beleza é um conceito relativo. Tudo depende de comparado com o que. Mas o que acontece quando a distância entre o padrão de beleza adotado e a mulher a ser comparada é muito maior do que determinam alguns quilos a mais, o tamanho dos seios, a perfeição do corpo ou os traços do rosto?
"Muitas pessoas pensam que o preconceito é coisa da nossa cabeça", diz Célia, 26 anos, estudante de biblioteconomia, portadora de seqüelas de poliomielite e que por isso usa aparelho ortopédico e bengalas. "Mas eu garanto que não é. Por exemplo, se estou sentada, não dá para perceber que sou deficiente. Perdi a conta de vezes em que rapazes me paqueraram em barzinhos. Só que, na hora em que eu me levantava, o interesse deles ia para o espaço. Só uma vez foi diferente Quando peguei minhas bengalas o rapaz disse: 'Continua linda!' A gente ficou juntos por dois anos".
As experiências negativas de Célia são compartilhadas por outras mulheres deficientes. "É difícil a visão de um corpo que mostra a possibilidade de nossa integridade corporal ser afetada", explica a psicóloga Lilia Pinto Martins, ela própria portadora de uma deficiência. "Ainda mais um corpo de mulher, tão cheio de significados ligados à idéia da maternidade. Como é que ela, feita para gerar, pode ter marcas que, à primeira vista, se opõem a essa concepção?"
Se é um fato que a deficiência pode acarretar limitações físicas, é certo também que não são essas limitações, em si mesmas, que fazem com que a pessoa deficiente seja estigmatizada pela sociedade. "No conjunto dos valores culturais que definem o indivíduo normal, estão incluídos padrões estéticos voltados para um corpo esculturalmente bem-formado. De certa forma, quem foge desses padrões agride a normalidade", diz o sociólogo João Batista Cintra Ribas, autor do livro "Quem são pessoas deficientes" (Ed. Brasiliense). Isso significa que a distância que separa a mulher deficiente de uma não deficiente é maior do que aquela que distingue a mulher comum de uma Bruna Lombardi.
Mas engana-se quem pensa que as mulheres deficientes estejam escondidas em casa, longe do mundo e dos homens. Cada vez mais elas estão indo à luta, mesmo que não seja fácil nem agradável expor-se a julgamentos e preconceitos. "Meu namorado contou que há muito tempo estava interessado em mim, mas temia abrir o jogo. Tinha medo de me magoar, caso estivesse enganado sobre seus sentimentos. Tinha medo de me machucar durante o ato sexual ou de eu não poder fazer amor, por causa da minha deficiência. E, por último, tinha medo de falhar na hora H, justamente por causa de tantos medos" .
"Não sou mais frágil do que a maioria das mulheres"
Felizmente para Márcia Regina, 28 anos, arquiteta, portadora de mielomeningocele (deficiência congênita também conhecida por espinha bífida, que causa limitação nos membros inferiores) e que usa cadeira de rodas, Fábio conseguiu convidá-la para um cinema. "Aos poucos, ele foi percebendo que não sou mais frágil do que a maioria das mulheres, tanto física como emocionalmente. Com carinho e diálogo, descobrimos a melhor maneira de fazer amor. Estamos juntos há três anos e pretendemos nos casar logo", diz.
Também se imagina que uma mulher deficiente seja incapaz de tomar conta de uma casa. Maria Lúcia, 45 anos, advogada, casada, paraplégica (lesão medular que impede o movimento das pernas), que usa cadeira de rodas, lembra que, quando ela e Roberto resolveram se casar, depois de dois anos de namoro, os sogros ficaram preocupados. "Mas como você vai cozinhar, lavar, passar? Vocês não vão ganhar o suficiente para as empregadas necessárias", disseram. Depois de oito anos de casamento e dois filhos, os temores se revelaram infundados. "Só tenho uma empregada, e isso porque trabalho fora", diz Maria Lúcia.
Embora a desinformação leve muitas pessoas a acreditar que mulheres deficientes não podem nem devem ser mães, a maioria delas - e aqui se incluem as portadoras de seqüelas de poliomielite e mesmo casos de lesão medular - é capaz tanto de sentir prazer como de gerar e ter filhos, inclusive através de parto normal. Em sua tese de mestrado intitulada "Reabilitação Sexual da Pessoa com Lesão Raquimedular", a dra. Isabel Loureiro Maior, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que as contrações uterinas são automáticas e persistem sem a conexão neurológica. Assim, paraplégicas e tetraplégicas têm contrações absolutamente normais, mesmo que não percebam a ação uterina. "Mas esse problema pode ser sanado pelo exame médico a partir da 32ª semana de gestação", esclarece.
Pensa-se ainda que deficientes terão, necessariamente, filhos portadores do mesmo tipo de deficiência, o que também não ocorre, exceto em alguns casos muito específicos. Leonor, 34 anos, cega desde o nascimento, lembra que seus pais nem se alegraram quando ela engravidou, tal o medo de que o neto tivesse problemas. "Tenho dois filhos saudáveis e alegres. O mais velho, de seis anos, já me ajuda a cuidar do menor de nove meses. Eles jamais foram vítimas de acidentes mais sérios do que os joelhos ralados de costume", afirma Leonor.
Repetição das mesmas atitudes de muitos séculos atrás
Cada vez que uma pessoa é preterida apenas, em razão do sua deficiência, desconsiderando-se sua personalidade e capacidade profissional, o que está ocorrendo, no fundo, é a repetição de atitudes ensinadas e aprendidas há milênios. Na Antiga Grécia, essas crianças eram vistas como seres sem alma e abandonadas para morrer. O Cristianismo considerou-as "um castigo mandado por Deus" e, portanto, dignas de pena. Mas mesmo quando a Medicina desmistificou esses conceitos, a deficiência continuou sendo encarada como uma desgraça a ser evitada, extirpada ou escondida.
Os meios de comunicação de massa e, antes deles, a literatura (vide corcunda de Notre Dame) sempre reforçaram essa idéia. Na televisão cinema e propaganda, veicula-se a concepção de que para ser amada e feliz é imprescindível que a pessoa seja jovem, bonita, e, obviamente, não tenha nenhuma deficiência física, sensorial ou mental. Só muito recentemente têm surgido histórias onde a heroína paralítica não precisa sair andando, nem o mocinho cego precisa voltar a enxergar para se ter um "final feliz". Filmes como Amargo Regresso, Uma Janela para o Céu, Gaby — Uma História Verdadeira pertencem a essa nova safra.
Mas a lição segundo a qual para ter direito ao amor e à felicidade é preciso não ser deficiente foi introjetada por milhares de pessoas, entre elas os próprios deficientes. "Fizemos amor. Ele foi gentil, carinhoso e até ardente. Disse mais de uma vez que me quer do jeito que sou. Fico pensando: não sou rica, logo ele não deve estar comigo pelo dinheiro. Não tenho poder, então também não deve ser pelo status. Certamente ele não está comigo por causa ao meu corpo escultural. Só posso concluir que gosta mesmo de mim. Às vezes, até finjo que acredito, mas, no fundo, duvido", reflete Rosa Maria, 45 anos, professora, tetraplégica (lesão medular que compromete os membros superiores e inferiores).
A questão da auto-estima e auto-imagem passa, necessariamente, por uma via de mão dupla. Se a mulher deficiente não vê a si mesma como atraente e capaz de ser amada, provavelmente nenhum homem reconhecerá nela essas qualidades. Mas se, por outro lado, nenhum homem jamais a tiver olhado como mulher, é quase certo que ela não se acreditará com os mesmos direitos das outras. "Somente quando me vi refletida nos olhos do meu primeiro namorado foi que tive a confirmação de que de fato era uma mulher e poderia ser amada, apesar da minha deficiência", diz Luciana, 42 anos, jornalista, casada portadora de seqüelas de pólio, que usa cadeira de rodas.
Interessante observar que os homens deficientes, também submetidos ao mesmo bombardeio publicitário para procurar uma mulher de corpo escultural, nem sempre fazem o papel desse espelho. "Quando ele, paraplégico e impotente, se achou no direito de criticar o meu corpo, eu vi que aquele relacionamento não ia nem começar", relata Helena, 30 anos, que teve sua perna direita amputada depois de um acidente "Conheço vários homens deficientes e fico impressionada com a sua arrogância. Ninguém menos que a Luíza Brunet serve para eles".
O que ocorre é que, aparentemente, para o homem portador de uma deficiência, é ainda mais importante que para um não deficiente ter uma mulher "tipo avião". Além de ascender socialmente, ele ameniza a carga de preconceitos que recai sobre si, como se quisesse provar: "Sou deficiente, mas sou potente."
É verdade que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado à mulher deficiente que busca um companheiro de físico perfeito, mas vale lembrar que as mulheres, deficientes ou não, são ensinadas a valorizar mais outras qualidades no homem, como inteligência, honestidade, bom humor do que a mera aparência física.
Mas se não é agradável para uma pessoa ser rejeitada exclusivamente em razão da sua deficiência, o reverso da medalha, ou seja, ser escolhida por possuir um defeito, também pode ser aterrador. "Sempre pensei que ele estivesse comigo por amor", conta Júlia, 34 anos, publicitária, desquitada, portadora de seqüelas de poliomielite (também conhecida por pólio ou paralisia infantil, deficiência que pode comprometer membros inferiores e superiores, preservando a sensibilidade), que usa cadeira de rodas. "Mas um dia ele me disse que, embora preferisse as mulheres bonitas e não deficientes, achava que elas davam muita preocupação, porque viviam sendo paqueradas Assim, achava mais prático e seguro ter uma mulher como eu. Quando respondi que os homens também me paqueravam, ele disse que até podia ser, ‘pois neste mundo tinha louco pra tudo’. Depois disso, meu casamento acabou".
Não superestimar nem subestimar as dificuldades
Fazer de conta que a deficiência não existe é outra atitude que, longe de ajudar, pode atrapalhar. "Tenho um amigo que acha que todos somos, de certo modo, deficientes e, por isso, ele faz questão, segundo a visão dele, de me tratar igual a todo mundo", diz Sônia, 19 anos portadora de seqüelas de pólio e que anda com aparelhos. "Quando andamos juntos, não se preocupa em acompanhar o meu passo. Além de considerar isso uma falta de delicadeza, acho que no fundo ele não quer ser visto ao meu lado. Preferiria que ele não fosse tão ‘destituído’ de preconceito e respeitasse o meu ritmo."
Quando tratamos um deficiente como se ele não o fosse estamos desrespeitando suas limitações. Se não é justo superestimar suas dificuldades, também não é correto subestimá-las. Tratar igualmente os desiguais não significa necessariamente fazer justiça. A deficiência, em si, não é ruim nem boa — trata-se apenas de aprender o melhor modo de conviver com ela. Nesse aprendizado, ingredientes como acreditar em si mesmo, olhar o mundo de frente, ver as pessoas em sua dimensão verdadeira e ir à luta sem medo são absolutamente essenciais.
Obs.: Esta reportagem foi publicada pela revista Claudia, da Editora Abril, em junho de 1989.
ola, bom dia tenho textos e uma referencia ao tem de mulheres com deficiencia e gostaria de me colocar a disposicao para contribuir
ResponderExcluirabrcs tatiana rolim
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